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A Saúde Mental em Tempos de Crise Climática e Humanitária

  • Foto do escritor: Comunicação Caese
    Comunicação Caese
  • 10 de out.
  • 3 min de leitura

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Quando Ailton Krenak afirma que “a saúde acontece na fricção entre nosso corpo e a Terra” (Krenak, 2024), ele nos lembra de algo fundamental: não existe saúde humana isolada da saúde do planeta. Respiramos, sentimos e sonhamos em diálogo constante com o solo, a chuva, as estações, o frio e o calor que nos atravessam. Ignorar essa relação é abrir fissuras no psiquismo, permitindo que o humano se desgaste silenciosamente. A saúde mental está entrelaçada à saúde do planeta; cuidar de um é cuidar do outro, e as crises ambientais e humanitárias são, em essência, crises de saúde.


A ecopsicanálise nos ensina que essas crises não são apenas externas, mas internas, simbólicas, psíquicas. Theodore Roszak (1992) afirma que “a repressão do inconsciente ecológico é a raiz mais profunda da loucura dita normal da sociedade industrial. Abrir acesso a esse inconsciente ecológico é o caminho para a sanidade”. Quando o mundo natural se torna imprevisível — ondas de calor que destroem, frio intenso que paralisa, tempestades que deslocam, água que falta ou sobra —, o inconsciente ecológico é convocado: o que foi silenciado emerge como angústia, perda de sentido e medo profundo.


Crises climáticas e humanitárias rompem mais do que ecossistemas ou infraestruturas; rompem sonhos, perspectivas e segurança emocional. Moradia pode ruir, mas morre também o lar interior que guardava planos; comunidades podem ser deslocadas, mas deixam cicatrizes no pertencimento e no vínculo simbólico. Secas prolongadas, enchentes, frio ou calor extremos tornam-se metáforas vivas de vulnerabilidade. Estudos mostram que a perda de contato com lugares significativos — terras ancestrais, paisagens familiares, natureza próxima — aumenta o risco de distúrbios de humor, ansiedade existencial, depressão e sensação de vazio (Roszak, Gomes, & Kanner, 1995; Seed, Macy, & Naess, 1988).

Rubem Alves nos lembra que “esperar transforma” — não uma espera passiva, mas um gesto criador, esperança encarnada. É assim, entre o que já existe e o que ainda pode ser, que enfrentamos crises: elas quebram mais do que florestas e rios, refratam futuros e iluminam fragilidades psíquicas com luz inclemente.

A ciência confirma o que muitos sentem: extremos de calor e frio, secas prolongadas, enchentes e ventos impetuosos não afetam apenas corpos ou lares, mas atravessam a mente. Uma revisão sistemática de 88 estudos em bases como Medline, Web of Science, EMBASE e PsycINFO encontrou associações claras entre exposições climáticas — calor extremo, ondas de calor, umidade, radiação solar — e aumento do risco de transtornos mentais, incluindo depressão, ansiedade, transtornos de humor e risco aumentado de suicídio; o frio extremo, embora menos estudado, também impacta populações vulneráveis (Cianconi, Santomauro, & Harris, 2019).


Em diversos cantos do mundo, eventos extremos já mostram impactos emocionais significativos. Comunidades afetadas por enchentes ou secas prolongadas relatam aumento de ansiedade, depressão, estresse pós-traumático e sensação de desamparo. Crianças percebem o perigo antes de compreenderem o que ocorre; jovens veem projetos interrompidos; adultos lidam com insegurança econômica; idosos enfrentam solidão e fragilidade. O sofrimento não é apenas físico: atravessa pensamentos, emoções e vínculos.


Cuidar da saúde mental não é luxo — é necessidade vital. Investir em suporte psicológico, redes de acolhimento, políticas públicas, educação emocional e escuta qualificada é proteger sonhos, reconstruir lares internos e fortalecer comunidades. Permitir o luto pelos rios que secam, pelas árvores que morrem e celebrar o que ainda sobrevive, cultivando esperança concreta, constrói resiliência.

Reconstruir não é voltar ao que era; é inventar novos modos de viver, de ser no mundo, de cultivar empatia, solidariedade e esperança. Saúde mental em emergências humanitárias é um espelho: revela fragilidades do contrato social, mas também mostra a potência da reconstrução compartilhada. Conviver com o paradigma de crises exige inteligência do cuidado — reconhecer que o mundo mudará, que tempestades e estiagens ocorrerão, mas que é possível viver com sentido, reconstruindo passo a passo o futuro que ainda desejamos.

Por: Leila Teixeira - Psicóloga, Psicanalista,

Pesquisadora e Consultora em Saúde Mental Rede CAESE|CEAEDD França-Brasil


Referências

Cianconi, P., Santomauro, F., & Harris, M. (2019). Global climate change and mental health: A systematic review. Journal of Affective Disorders, 241, 81–92. https://doi.org/10.1016/j.jad.2018.08.042

Janzen, B. (2022). Temperature and mental health: Evidence from helpline calls. arXiv. https://arxiv.org/abs/2201.08123

Krenak, A. (2024). Palestra na ENSP: A saúde acontece na fricção entre nosso corpo e a Terra. Escola Nacional de Saúde Pública, Rio de Janeiro.

Roszak, T. (1992). The Voice of the Earth: An Exploration of Ecopsychology. Simon & Schuster.

Roszak, T., Gomes, M. E., & Kanner, A. D. (Eds.). (1995). Ecopsychology: Restoring the Earth, Healing the Mind. Sierra Club Books.

Seed, J., Macy, J., & Naess, A. (1988). Thinking Like a Mountain: Towards a Council of All Beings. New Society Publishers.

 
 
 

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